Talvez o assunto mais comentado em todas as mídias dos países da América Latina, nos últimos dias, foram as deportações prometidas e cumpridas por Donald Trump. O momento atual, político e social, em que o mundo vive, com a construção genérica de narrativas ao gosto do cliente, requer que façamos algumas ponderações sobre a realidade dos fatos. Para desnudar factoides, as deportações sempre existiram nos EUA. Ponto. O que acontece nesse momento é um espetáculo midiático por parte da Casa Branca, com o intuito de efetivar promessa de campanha com grupos supremacistas e humilhar pessoas, com o objetivo de frear novas entradas ilegais em território americano.
Com os atentados de 11 de setembro de 2001, contra o World Trade Center e o Pentágono, o presidente George W. Bush criou o United States Departament of Homeland Security – DHS ou Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos, com a missão de proteger o território americano, na esfera civil, em casos de ataques terroristas e desastres naturais, incluindo detectar, investigar e corrigir as vulnerabilidades relacionadas às fronteiras americanas, como a do México, do Canadá e a fronteira marítima com o Golfo do México.
Nesse contexto, como órgão subordinado ao DHS, passou a existir a agência policial U.S. Imigration and Customer Enforcement – ICE ou Serviço de Imigração e Controle de Aduanas dos Estados Unidos, com sede em Washington D.C., dirigida por Diretor nomeado pelo Presidente dos Estados Unidos, que se reporta diretamente ao Secretário de Segurança Interna, sendo a segunda maior agência de investigação do país e ficando, em número de efetivos, somente atrás do FBI.
De acordo com informações da Agência Brasil, durante o ano fiscal americano, que terminou em 30 de setembro de 2024, o governo Biden deportou 271 mil imigrantes, de várias nacionalidades, sendo o maior nível de deportações desde o ano fiscal de 2014. A informação oficial foi divulgada pelo relatório de fiscalização da ICE, que também estima a presença de 11 milhões de imigrantes sem status legal em território americano. Alguns órgãos de defesa de imigrantes aumentam esse número para 13 milhões ou 14 milhões de indocumentados. Fato esse, ocorrido sem mediatismo.
Morei nos EUA entre 2002 e 2012, na região de Boston, Massachussets. Em 2004, esse número de imigrantes, sem status legal, já foi superior a 15 milhões de pessoas, sendo que na Nova Inglaterra ou New England, que é composta pelos estados de Massachussets, New Hampshire, Connecticut, Maine, Rhode Island e Vermont, estimava-se a presença de 500 mil brasileiros, a maioria em Massachussets. Atualmente cidade de Framingham/MA, com 75 mil habitantes, calcula-se que 20% da população seja brasileira.
Importante salientar que existem regras e procedimentos durante o processo de deportação, iniciando-se com detenção do imigrante, podendo este permanecer encarcerado até o final do processo, ou, em alguns casos, pagar fiança com a obrigatoriedade de comparecimento às audiências seguintes. O governo Trump, numa das suas novas determinações para agilizar as deportações, expandiu o procedimento de “remoção acelerada”, principalmente nos casos de pessoas detidas nos centros de custódia da fronteira com o México, portanto, pessoas que não chegaram a entrar em território americano, dando poder às autoridades imigratórias para expulsar uma pessoa sem a necessidade de audiência perante um juiz de imigração.
É essencial evidenciar que, em alguns casos, como crimes não violentos ou ter filhos americanos, o imigrante detido é solto, com um prazo para sair do país autonomamente, inclusive custeando seu retorno, num acordo prévio com o juiz de imigração. Portanto, até aqui, não se pode generalizar o processo de deportação de imigrantes do solo americano. São casos distintos, analisados individualmente, obedecendo determinações das leis de imigração.
As especificidades para abertura de um processo de deportação obedecem a critérios que se baseiam na forma como o imigrante entrou em solo americano. Todos aqueles que adentraram o país por meio de visto de turista, emitido por embaixada ou consulado no seu país de origem, passará por audiências com um juiz de imigração, podendo inclusive solicitar alteração do seu status de turista, para estudante, por exemplo, se comprovar estar estudando. Aqueles que ingressaram nos EUA, oriundos de países que fazem parte do Programa de Isenção de Vistos (VWP), quando o visto de entrada não é obrigatório, após ser detida, a pessoa fica reclusa em centro de custódia para imigrantes, aguardando oportunidade de ser deportada sumariamente, sem direito a apelação. Os que atravessaram as fronteiras americanas ilegalmente, uma vez detidos, podem em alguns casos, em que fica comprovado o risco de vida no retorno ao seu país de origem, solicitar asilo nos EUA. Na maioria das ocorrências, a deportação ocorre de forma sumária.
Num país essencialmente composto por imigrantes, porquanto somente os nativos nasceram em território americano, a imigração, inicialmente europeia, que ajudou a construir o império norte-americano, se tornou uma adversidade de dimensões incontroláveis, de dificílima resolução, a não ser com a possibilidade de legalização da maior parte daqueles que vivem há muitos anos e construíram o tão propagado sonho americano honestamente, com muito suor e trabalho.
Com 10 anos vividos nas Terras do Tio Sam, sempre tive a consciência e a certeza de que é impossível deportar todos os imigrantes sem status legal, que vivem nos EUA, principalmente porque não há espaço físico para acomodar nem 10% dessas pessoas detidas. Depois, não há efetivo de pessoal suficiente no Departamento de Imigração para dar encaminhamento a essa quantidade colossal de processos de deportação, e os custos com a detenção, alimentação e deportação desses indivíduos, seriam estratosféricos. De acordo com o American Immigration Council, entidade que atua na defesa de imigrantes, deportar todos aqueles que estão com status ilegal, vivendo nos EUA, custaria U$ 315 bilhões de dólares. Finalmente, porque, sem grande parte dos imigrantes que desempenham as tarefas que os americanos se rejeitam a fazer, como funcionarão alguns setores da economia, principalmente a área de serviços?
Essa seria uma questão que teria fortes impactos nos negócios como limpezas em geral, construção civil, lanchonetes/cafeterias, restaurantes etc. Nos últimos dias, por exemplo, algumas igrejas evangélicas americanas estão realizando seus cultos com menos fiéis, pois o clima é de apreensão e medo. Em New York, uma igreja colocou aviso na porta, alertando a ICE que só poderiam entrar com autorização judicial. Estabelecimentos comerciais, também estão lidando com a falta dos funcionários, receosos em ir trabalhar e sofrer com batidas da ICE. O pânico é geral, principalmente em estados com menor aceitação de imigrantes, como Arizona, Alabama, Geórgia, Indiana e Carolina do Sul, que já lutaram em tribunais para implementar leis estaduais anti-imigrantes. Trata-se de um imbróglio que trará menos ganhos e mais perdas, para os diversos setores da economia americana.
Vivendo esse problema de dimensões colossais, os EUA promoveram o último grande ato para legalização de imigrantes em 06 de novembro de 1986, com a Lei de Reforma e Controle de Imigração (IRCA), realizada pelo governo Ronald Reagan, dando oportunidade de quase 2,7 milhões de legalizações, em um montante de 5 milhões de imigrantes ilegais, naquele momento do país. O maior programa de legalização na história dos EUA já completou 38 anos. Em 2000, nos últimos meses do governo de Bill Clinton, a lei criada por Reagan foi reaberta por 4 meses, contemplando somente trabalhadores em áreas específicas, como restaurantes, padarias, pizzarias etc., legalizando um número muito pequeno dos imigrantes da época, que já batiam na casa dos 10 milhões de indocumentados.
A questão imigratória nunca encontrou consenso entre Democratas e Republicanos para ser discutida, em comum acordo, na Câmara dos Representantes dos Estados Unidos ou Câmara dos Deputados. Pelosi Nancy, ex-presidente da Casa, tentou em algumas oportunidades, principalmente durante parte do primeiro mandato do governo de Barack Obama, incluir o assunto numa discussão mais aprofundada, sem sucesso. Nos bastidores da política americana há enorme rejeição, principalmente por parte dos Republicanos, em discutir e resolver esse assunto. A visão do partidário republicano é que, uma vez cometido o erro da entrada irregular no país, essa pessoa deve ser punida sumariamente com deportação, sem a possibilidade, inclusive, de pagar multa pelo seu crime contra a imigração americana. Em algumas oportunidades desse período, entidades que representam grupos pró-imigrantes trouxeram a possibilidade de pagamento de multa de 1 mil dólares por cada imigrante, além de arcarem com custas processuais, pagamento de Imposto de Renda dos últimos 5 anos, e de não terem ficha criminal, numa eventual legalização.
Onde há trigo, o joio também estará presente. Todos os imigrantes que estão sem os documentos essenciais para viver nos EUA cometeram crimes contra as leis migratórias. A prioridade do departamento de imigração sempre foi a de buscar aquele imigrante com problemas criminais, porém, a possibilidade de estar no lugar errado, na hora errada, é latente. O sujeito honesto e trabalhador pagará o mesmo preço do desonesto e oportunista.
O processo de migração internacional, forçado ou não, pode ser desencadeado em consequência de diversos fatores, como desastres naturais, guerras, perseguições políticas, religiosas, étnicas e culturais, porém, a principal causa é a econômica, aquela em que o sujeito migra forçadamente, em busca de melhores condições de vida para sua família. Nesse diapasão, as medidas propostas e implementadas pelo Consenso de Washington, em novembro de 1989, capitaneado pelos EUA e pela Inglaterra, tendo como foco os países da América Latina, com a imposição de propostas neoliberais, mostram o colapso nas economias desses países, fato preponderante para o alto índice de migração rumo ao norte do continente americano.
O economista coreano Ha-Joon Chang, professor da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, afirma que “o Consenso de Washigton foi uma armadilha criada pelos países desenvolvidos para impedir que os países subdesenvolvidos conseguissem atingir os mesmos níveis de desenvolvimento do Primeiro Mundo.” O economista coreano criou o termo “chutando a escada”, demonstrando a forma que os países desenvolvidos usaram para impedir que os países do chamado terceiro mundo fossem impedidos de alcançar o mesmo sucesso deles.
No país de Rosa Parks, que em dezembro de 1955 se recusou a ceder seu lugar num ônibus em Montgomery, no Alabama, que ainda atualmente segrega minorias, que separa bairros como de brancos, de negros e de latinos, obter o visto de residência permanente, o Green Card, não livra o imigrante das discriminações, humilhações e xenofobias. Uma vez imigrante, sempre imigrante. Você resolve sua questão legal com o governo, não com a cultura racista americana, que credita a entrada de doenças virais no país à imigração latina. Para parte desses americanos, os radicais, quem está abaixo dos Estados Unidos geograficamente fala espanhol e a capital do Brasil é Buenos Aires.
Num universo de centenas de milhares de imigrantes brasileiros que vivem nos EUA, não chegam a 10% dessa população os portadores de Green Card ou até mesmo da cidadania americana. Assim como qualquer região do mundo que se torna um El Dorado, a combinação de pessoas, com motivações, culturas, credos e posições sociais diferentes, forma uma população disforme e heterogênea. A maioria saindo do seu mundo para habitar outro completamente desconhecido, que foge da sua realidade, para ir em busca daquilo que nunca vivenciou e não conhece, não tem conhecimento da língua, da localização geográfica, se está acima ou abaixo da Linha do Equador, se está no Ocidente ou no Oriente. Nesse momento de extrema tensão em que o sujeito sai de casa para trabalhar sem saber se vai voltar para rever os filhos, a minoria, que já está estabelecida, documentada e legalizada, indo e vindo, contribui muito pouco para amenizar o sofrimento daqueles com os quais um dia, ambos ainda indocumentados, dividiam moradia, dificuldades e preocupações. É cada um por si e Deus por todos.